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A lógica de mercado, da oferta e demanda, da livre concorrência, estabelece o preço — mais especificamente o menor preço — como o primeiro critério de escolha para tudo. O dinheiro, enquanto indicador de preços, torna-se o único mediador das trocas econômicas. Esse sistema é muito eficiente em apontar onde há demanda por alguma mercadoria, produto ou serviço, mas não é perfeito.
Liberais, vislumbrados com essa eficiência, acreditam que o mercado, quando desimpedido, caminha a um ambiente de harmonia (autor regulatória) e maior justiça nas relações econômicas. O neoliberalismo, enquanto paradigma de organização socioeconômica, é fruto desse princípio. Mais recentemente, aquele conjunto de ideias surgidas nos EUA e que ganham o nome de “aceleracionismo” (que aos poucos ganham proeminência na Casa Branca) é a última manifestação desse dogma, dessa vez radicalmente disposto a romper mercado e democracia (ou melhor, política), em favor do primeiro.
O pleno desenvolvimento do “Mercado” e suas forças depende inteiramente da mercantilização de tudo: é necessário que se anulem as diferenças culturais e mesmo físicas para que tudo se torne mercadoria — inclusive o homem —, e possa, enfim, ser submetido a essa lógica. A Bolsa de Valores (a financeirização do capitalismo, que faz dele um mercado virtual em cima do mercado real), com a compra e venda de ações (isto é, títulos de propriedade que supostamente correspondem a entidades do mercado real, conferindo lucro) é o protótipo da sociedade em que o mercado reina.
O problema, evidentemente, é que o homem não pode ser submetido à condição de mercadoria. O nome disso é escravidão. Não pode, não por questões éticas (pois há ideologias e sociedades onde tais regimes são ou foram normalizados), mas, de certa forma, por questões ontológicas, de natureza humana. O meio termo, que não é uma inovação do capitalismo, mas que foi universalizado por ele, é o trabalho assalariado: sendo ele próprio um ser inalienável de si e tendo que se submeter a uma economia de trocas intermediada pelo dinheiro, para subsistir, o homem vende sua “força de trabalho” para que, com o dinheiro ganho, cuide de sua própria vida. A outra característica do trabalho assalariado, que torna ele o modelo para o capitalismo (ao menos em sua fase industrial e massificada) é que ele concede aos indivíduos a qualidade de consumidores, tão importante para o funcionamento da economia de mercado.
Entretanto, mesmo fora da condição de escravo, o empregado assalariado encontra-se submetido à lógica da mercadoria. O valor de sua força de trabalho (sua remuneração) está relacionado à oferta e demanda e à sua qualificação, ao preço de seu trabalho. Consequentemente, sua capacidade de cuidar de si mesmo dentro do modelo de sociedade em que vive está precificada, é instável, e, portanto, ameaçada pelas variações do mercado.
O corolário desta primeira parte deste artigo é: o regime de trabalho assalariado, submetido à pura lógica de mercado, implica no desamparo formal dos trabalhadores porque nessa organização, o individuo é o único responsável pela própria subsistência num contexto em que nem sempre a “justa paga” pelo trabalho ou serviço é o suficiente para a manutenção de uma vida considerada digna.
Essa situação sempre foi vista como um escândalo no mundo ocidental. Veja os relatos da revolução industrial inglesa: mulheres e crianças trabalhando por longas jornadas de trabalho por remuneração que mal pagavam os cortiços em que viviam. Muitas das lutas sociais e políticas desenvolvidas a partir do século XIX e toda a proteção trabalhista dali advinda se basearam no princípio de que, para além da lógica de oferta e demanda, é necessário que exista uma força capaz de mediar os interesses conflitantes entre trabalhadores (que querem ser mais do que isso) e patrões (que precisam pagar o menor preço possível para o trabalho disponível). Às vezes sindicatos sozinhos vencendo a luta política, às vezes os grupos no controle do Estado, a história dos “direitos sociais” e trabalhistas, ou do desenvolvimento do “Estado de Bem-Estar Social” é a história da obtenção de amparos ao trabalhador conservando as estruturas básicas do capitalismo ao mesmo tempo em que suas forças elas eram contidas ou canalizadas.
Tenha-se em mente que mesmo esse suposto auge do capitalismo brasileiro não alcançou uniformemente (em termos de classe, época e região) a população, o que significa que ele é, em certa medida, um processo inacabado ou mesmo ultrapassado pelas condições históricas do tempo presente. Ainda assim, é em nome desses avanços civilizatórios que os trabalhistas e socialistas defendem os marcos do antigo sistema de bem-estar social. E também é em nome deles que — explicitamente ou não —, a extrema-direita avança nos antigos países centrais do capitalismo, que vivenciaram nos últimos quarenta anos um processo de desindustrialização e desmonte daqueles sistemas de bem-estar social.
Na década atual, esse processo de abolição das proteções socais e trabalhistas, encontra-se adiantado. A uberização, pejotização e aumento da informalidade, longe de representar um aumento da liberdade de negociação dos trabalhadores, significa, muitas vezes, o abandono de qualquer perspectiva de planejamento da vida. Os trabalhadores uberizados encontram-se desamparados porque são os únicos responsáveis — via remuneração — do seu próprio sustento ao mesmo tempo em que mal se tem a previsibilidade de que serão contratados em algum momento ou pelo número necessário de vezes para manter um certo padrão de vida. Os trabalhadores pejotizados — muitas vezes quando essa condição esconde uma relação comum entre patrão-empregado —, ainda contando com maior regularidade do pagamento, podem, a qualquer momento, encontrarem-se demitidos, sem qualquer apoio que suporte o tempo desempregado, dependendo, quando possível, das poupanças que conseguem fazer.
As pseudoteses de meritocracia, somadas às constantes desqualificações (de fundo racista) da inteligência do trabalhador brasileiro formam o conjunto ideológico que tenta justificar essa situação. Naturaliza-se a ideia de que o trabalhador, apenas com sua remuneração, é o único responsável pelo cuidado de sua própria família, ao mesmo tempo em que o desmonte do Estado leva-o à indignação de se ver pagando duas vezes por um mesmo produto (escola pública e cursinho; SUS e plano de saúde; polícia e vigilância privada). Há uma construção ideológica que leva a maior vítima da lógica de mercado a buscar a expansão da mesma, como se a desregulamentação das relações trabalhistas ou enfraquecimento das organizações sindicais levasse a um aumento da remuneração, os primeiros aconteceram na contrarreforma trabalhista do governo Temer, e, até hoje, a prosperidade geral não aumentou.
A tendência histórica dos brasileiros de buscarem no serviço público a tão necessária estabilidade para fincarem raízes e viverem dignamente é fruto direto dessa configuração, que nunca deixou de estar presente —mesmo em épocas em que a qualificação da mão de obra, somada à legislação trabalhista e previdenciária davam conta de garantir uma boa vida para quem conseguisse se beneficiar — para grande parte da população. O engodo do empreendedorismo tal como apresentado hoje, é muitas vezes uma via de conformação perante um contexto em que concursos se tornam cada vez mais escassos.