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Introdução
O presente artigo tem como objetivo discutir a inserção do trabalhador na vida econômica do Estado brasileiro, tendo como ponto central de análise a figura política de Getúlio Dornelles Vargas. Para compreendermos essa inserção, será apresentada a mudança no modelo econômico do Estado brasileiro, que teve início a partir de 1930, e como essa mudança permitiu a criação de uma nova relação entre o Estado e a classe trabalhadora. Será abordado o ideário nacional-desenvolvimentista presente no país e a nova forma de gerenciamento do Estado brasileiro, rompendo com o antigo paradigma de um liberalismo econômico do século XIX. Será analisada também a constituição de 1934, que trouxe consigo a consagração da intervenção do Estado no terreno da política econômica e social. A partir desses pontos de análise, buscamos compreender como se deu a inserção do trabalhador na vida econômica do Estado brasileiro durante o governo de Getúlio Vargas.
Vargas, o Nacional-Desenvolvimentismo e a Classe Trabalhadora
John W. Dulles, importante autor brasilianista do século XX, em seu livro Getúlio Vargas: Biografia Política, aponta bem o caráter “caudilhista” de Vargas advindo da tradição do castilhismo rio-grandense, Getúlio soube apoiar-se sobre o apoio das massas do início de seu governo revolucionário, até a fase última, a fase democrática (1951-1954).
Getúlio Dornelles Vargas (1884-1954), foi uma das figuras políticas mais emblemáticas de seu tempo, seu estilo peculiar de lidar com a realidade política, e a introdução do trabalhador na vida econômica do Estado nacional, o fizeram alguns historiadores chamarem-no de “populista”, segundo Fonseca e Salomão (2019), um conceito maleável, e que pode ter diversos significados para aquele que aplica-o. Laclau (2013), também segue um pouco com essa visão, onde o povo que segue o líder carismático não pode ser tido como algo homogêneo, fruto de manobras das lideranças, sem um papel ativo no processo decisório, em seu livro “A razão populista”, dentre uma das perspectivas abordadas, o autor defende que são em parte por fatores ligados a uma identidade nacional como etnia, religião, classe social e etc, onde os excluídos são integrados ao processo político, momento esse que o líder político encontra meios de criar conexões com o povo, numa simbiose que é de interesse também do próprio povo.
Nos apoiando então nessa visão do conceito populista em Ernesto Laclau, e adaptando-a para a realidade dos anos de 1930-1945, observamos que o governo Vargas foi de fato marcado pelo populismo político, mas com uma massa trabalhadora que lutara ativamente por seus direitos políticos, econômicos e principalmente pelos direitos trabalhistas desde fim dos anos 10, tendo a ascensão do operariado brasileiro um importante fator de consolidação de tais lutas.
Neste processo de lutas pelas demandas trabalhistas, em um período de república-velha fatigada, essencialmente agrária e oligárquica, que surge a figura de Vargas, o modelo federalista-liberal do Estado brasileiro, representado pelas oligarquias cafeeiras, viram na revolução de 1930 uma oposição de modelo de Estado liberal, mas principalmente uma nova relação entre trabalho, trabalhador e o líder populista, que muitas vezes personalizou o próprio Estado brasileiro.
Para que esta inserção do trabalhador acontecesse de fato, é interessante observar que houve uma mudança no modelo econômico do Estado brasileiro, sem este fator é inconcebível a relação que será criada por Vargas, durante seus governos.
Foi efetivamente a partir de 1930 que o ideário desenvolvimentista se tornou a principal corrente norteadora da política econômica nacional. Contribuiu para isso não só a Grande Depressão, que expôs a fragilidade da economia agroexportadora, mas também a nova correlação de forças políticas que emergiu após a Revolução de 1930. (FONSECA & SALOMÃO, 2019).
Esta época é marcada pela ênfase na industrialização econômica do Brasil, mediante a ação do Estado como indutor do desenvolvimento, em contraposição a abertura ao capital estrangeiro que ocorrerá no governo Juscelino Kubitschek. É importante salientar, que o ideário nacional-desenvolvimentista é algo anterior no Brasil ao próprio período Vargas, desde fins do Brasil-imperial e início da república sob a perspectiva positivista, há neste ideário econômico um Estado que sobressai-se administrativamente como organizador da ordem econômica e social do país.
Segundo Silva (2004, p. 31), “O movimento de outubro de 1930 marcou a transformação das estruturas políticas-sociais do Brasil. Com a deposição, pela primeira vez, de um presidente da República, encerrou-se todo um largo período de nossa história.”, com este movimento histórico, nasce então uma nova forma de gerenciamento do Estado brasileiro, rompendo com o antigo paradigma de um liberalismo econômico do século XIX que não mais atendia aos interesses do Brasil, um modelo agrário de Estado, que atendia somente aos interesses das elites cafeeiras, tendo então por cenário uma população trabalhadora a margem dos processos decisórios, e a luta social tida como “caso de polícia”.
Gomes (2000), traz de forma concisa a nova relação constitucional que haverá no governo Vargas e os interesses pátrios após a assembleia constituinte de 1934, sejam aqueles de ordem econômica, ou aqueles de ordem social como observamos.
No capítulo ‘da Ordem Econômica e Social”, pela primeira vez presente em um texto constitucional, o substitutivo veio consagrar a orientação de um anteprojeto que reconhecia a intervenção do Estado no terreno da política econômica e social. Desta forma, a nacionalização de certas atividades econômicas – como a exploração das riquezas do solo e do subsolo – bem como a presença do poder público na implementação de certas indústrias consideradas básicas são postuladas como uma necessária salvaguarda aos interesses da segurança nacional e do desenvolvimento do país. No campo da política social, estabelece-se a competência do Estado na regulamentação do mercado de trabalho, sancionando-se uma série de direitos relativos às condições de trabalho nas empresas e a benefícios de natureza previdenciária, além da autorização constitucional para legislar-se sobre o salário-mínimo. (GOMES, p. 67)
Observa-se uma tentativa de ruptura com a antiga ordem vigente no país, onde o papel do Estado na economia e nas questões sociais ganha novo significado, papel de realizador e principal organizador das demandas econômicas, a presidência ganharia a partir de então maior autonomia para dialogar e executar pautas de interesses com a massa trabalhadora. Esta massa que começava já, desde o fim do século XIX e início do século XX a organizar-se politicamente por meio dos grupos sindicais e outras organizações políticas, agora com a nova constituição vivenciam um novo paradigma.
Em resumo, inaugurou-se a partir de 1935 um novo quadro na vida política brasileira, em especial, na dinâmica das relações Estado/classe trabalhadora. Se em 1920 a questão social foi definida como uma questão policial – e os anarquistas foram apontados como ‘o inimigo objetivo’ – em 1935 ela iria ser definida como uma questão de segurança nacional. (GOMES, p. 177)
A partir de tal cenário, os diversos movimentos do período e consequentes confrontos políticos e militares, encaminharam o governo de Getúlio para uma atuação maior e acirrada contra os grupos políticos do período, em especial os ‘mais extremistas’, representados pelos integralistas e comunistas, tais grupos realizaram diversos levantes e rebeliões contra o governo, os comunistas possuindo a data marcante de 1935 com a intentona comunista. Em 10 de novembro de 1937, Vargas decreta o Estado-novo, proibindo os partidos políticos vigentes, fato este que incitou os integralistas a organizarem o levante integralista de 1938. A nova constituição promulgada é fruto de um clima de apreensão criado pelo “plano cohen”, um falso plano redigido por integralistas que visava demonstrar um plano revolucionário dos comunistas no país.
Quem lê o preâmbulo da Constituição de 1937 reconhece nela a fala de Getúlio Vargas à nação, irradiada em 10 de novembro. Toma-se conhecimento, no documento, de que o presidente, com o apoio das forças armadas, promulgava a nova Constituição para pôr fim a desordem. As ameaças à paz que o país defrontava incluíam conflitos ideológicos, e ‘dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procurava desnaturar em lutas de classes’; e também ‘o estado de apreensão criado… pela infiltração comunista, que se torna cada dia mais extensa e mais permanente.’ Talvez em consideração a esta circunstância, a Constituição declarava em todo o país, no seu penúltimo artigo, o estado de emergência. (Dulles, p. 187)
A constituição de 1937 é essencialmente marcada, por uma nova análise da conjuntura social, econômica e administrativa do período, Vargas toma para si cada vez mais os poderes do executivo e centraliza-os na sua pessoa, o estado de sítio criado outorgou-lhe amplos poderes, para assim induzir o processo legislativo via decretos, entre os pontos mais importantes dessa nova constituição está o sentido corporativista que a mesma possui, segundo Gomes (2000 , p. 81) tal legislação visava o controle da autonomia estadual e regional que havia no país desde a constituição de 1891, de modelo federalista, por um modelo que conciliasse os interesse públicos e das diversas classes sociais, tendo o Estado um papel arbitrário nessas relações.
Podemos dizer o seguinte: no Brasil dos anos 30, o grande ator político que nos explica a evolução de 1930 para 1937 de maneira absolutamente fundamental eram os estados. E, evidentemente, os militares centralistas, que podiam ser reformistas radicais ou reformistas moderados e que se situavam no mesmo eixo, mas no extremo contrário, contrabalançando as tendências regionais, puramente políticas e descentralizadas. (CAMARGO , p. 40-41)
Analisando à luz do que traz Camargo, não há um rompimento automático da antiga ordem vigente e os novos atores emergentes da revolução de 30, antes o que há são interesses dispersos e muitas vezes contrários entre o executivo nacional e tais poderes regionais, com isso o rompimento que há entre o modelo federalista advindo ainda da “república-velha” fica evidente com a nova constituição redigida em 1937.
O executivo nacional passará então por um novo tipo de dinâmica, Vargas e seu governo além de retirarem grande parte da autonomia dos poderes regionais, agora havia centralizado no modelo Estado-novista uma luta contrária aos poderes desagregadores, representados pelo privatismo e localismo, práticas recorrentes na antiga república. Sendo assim, um dos papéis principais dessa centralização política conforme aborda Diniz (2000, p. 80-81), é o Estado ser um ente que absorva às lutas coletivas em desfavor do privatismo da república-velha, o corporativismo ganha então razão de ser o principal instrumento de atuação do Estado na incorporação das diferentes classes. Observamos, com isto uma busca pela hegemonia no poder executivo nacional sobre o interesse público, o caminho varguista para a consolidação de um diálogo maior com o movimento de massas passaria necessariamente por este processo de centralização do poder e ordem pública.
Mesmo sendo uma constituição de caráter autoritário, essa constituição é de suma importância para nossa análise, já que ela criou um elo maior entre os trabalhadores brasileiros e o poder executivo nacional, para Gomes (2000) “o Estado forte e altamente autoritário iria absorvendo o sistema decisório[…]”, portanto segundo a autora há um desarranjo dos poderes regionais e uma tentativa cada vez maior de nacionalizar as decisões econômicas e sociais do país.
Ainda prosseguindo na linha de Gomes (1999), o modelo Estado-novista pode ser visto como um novo delineador da questão do trabalho e das aspirações do trabalhador nacional, se anteriormente havia no ideário político e cultural uma ideia de que a pobreza era natural, e o trabalho era uma espécie de “martírio” dos pobres, isto é rompido com o governo Vargas, em especial a fase do Estado Novo que vai de 1937-1945. A história recente do trabalho no Brasil remeteria o ideário do povo juntamente aos das elites a esta configuração societária de pobreza natural, de trabalho precarizado, para a autora o primeiro impacto de ruptura que há nessa relação trabalho-trabalhador é com a abolição da escravatura em 1888 e a instalação da república brasileira no ano posterior (p. 54), sendo assim, é a partir desse momento que começasse a pensar de forma estrutural as mudanças necessárias para a classe trabalhadora e seu papel como agente social de relevância maior para o Estado nacional. Gomes cita que:
O trabalho, desvinculado da situação de pobreza, seria o ideal do homem na aquisição de riqueza e cidadania. A aprovação e a implementação de direitos sociais estariam, desta forma, no cerne de uma ampla política de revalorização do trabalho caracterizada como dimensão essencial de revalorização do homem. O trabalho passaria a ser um direito e um dever; uma tarefa moral e ao mesmo tempo um ato de realização; uma obrigação para com a sociedade e o Estado, mas também uma necessidade para o próprio indivíduo encarado como cidadão (GOMES, P. 55)
Justamente nesse cenário que o Estado Novo se propõe como mediador da classe trabalhadora e dos patrões, buscando a valorização do trabalhador nacional, como um meio também de valorização espiritual (p.59), não apenas de um materialismo puro e simples, havia por detrás da ideologia trabalhista (ainda em construção) uma ideia de valor do trabalho também como dever moral, de integração ao trabalho, mas não mais de forma precarizada, que colocava a máquina acima dos operários (um sistema com bases tayloristas), segundo Gomes o Estado Novo buscou acima de tudo uma humanização do trabalho, não focando apenas em classes específicas, mas o todo da sociedade, todos aqueles que estariam aptos a contribuir para o valor social de seu trabalho seriam integrados nessa nova configuração.
Conclusão
Podemos observar ao longo deste artigo que o governo Vargas foi de suma importância para a inserção do trabalhador brasileiro no cenário político e social do Brasil. O Estado foi um ente extremamente presente na vida do trabalhador, de forma muitas vezes autoritária, como na consolidação do Estado Novo (1937). No entanto, ao mesmo tempo, observamos um paradoxo: um governo brasileiro que humaniza a relação trabalho-trabalhador e age de forma anti-democrática, com uma legislação outorgada ao invés de ser promulgada. O período histórico no qual observamos a ascensão do governo Vargas deve ser levado em consideração também nesse estudo e em futuros artigos que falem desse período histórico, para que não caiamos em anacronismos. É interessante notar a relação horizontal criada em seu governo e a humanização da questão do trabalho.
Observamos também uma mudança de modelo de Estado no Brasil que favoreceu a implementação de uma nova visão macroeconômica baseada no nacional-desenvolvimentismo, avesso ao modelo liberal da fase republicana do Brasil, que vai de 1894-1930. Notamos neste artigo que há uma ruptura nas estruturas do Estado nacional brasileiro, por isso adotamos a posição de que houve uma revolução em 1930, diferente de outras correntes.
Outra questão que pode ser aprofundada em futuros estudos são as noções de populismo, Estado-popular e personalismo presentes no governo Vargas, fatores que auxiliam ainda mais um estudo profundo sobre essa figura política tão importante e enigmática do passado nacional.
Acredito que para os objetivos propostos, o trabalho ora apresentado pode contribuir para a análise da dimensão da ação do governo Vargas e sua relação com a classe trabalhadora durante os primeiros 15 anos de seu governo, buscando facilitar a continuação de trabalhos acadêmicos que dimensionem a importância do ideário trabalhista e seus líderes na construção das políticas públicas pró-trabalhadores na história recente do nosso país.
Referências Bibliográficas
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GOMES, Angela Maria de Castro. Confronto e compromisso no processo de constitucionalização (1930-1935). In: GOMES, Angela Maria de Castro et al. O Brasil republicano: Sociedade e política (1930-1964). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. v. 3, cap. 1, p. 9-75.
GOMES, Angela Maria de Castro. Ideologia e trabalho no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999. cap. 4, p. 53-72.
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